Trump constrange presidente sul-africano com falsa alegação de que há um genocídio contra os brancos africâneres
Por Marcus Paiva
Jornalista e Editor-Chefe
🚩 Uma reunião que deveria aliviar as tensões entre os Estados Unidos e a África do Sul acabou se agravando quando o presidente Donald Trump colocou o presidente sul-africano em uma situação inedita de constrangimento no Salão Oval da Casa Branca. Trump fez falsas alegações de que fazendeiros brancos africâneres estavam sendo mortos e "perseguidos" pelos negros na África do Sul. Na quarta-feira, uma semana após os Estados Unidos concederem asilo a quase 60 africâneres — uma atitude que irritou a África do Sul — o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa visitou a Casa Branca para restabelecer boas relações entre os países. Em vez disso, Trump surpreendeu Ramaphosa durante uma entrevista coletiva ao vivo com alegações amplamente desacreditadas de um "genocídio branco" na África do Sul. Ele exibiu um vídeo durante a reunião mostrando várias cruzes ao longo de uma estrada, alegando que eram locais de sepultamento de fazendeiros brancos assassinados.
1️⃣ Trump disse não saber em que local da África do Sul a filmagem foi feita. Só que Trump exibiu uma captura de tela de um vídeo da Reuters feito na República Democrática do Congo e afirmou, de forma falsa, que a imagem era prova de assassinatos em massa de brancos na África do Sul. O vídeo em questão foi publicado pela Reuters em 3 de fevereiro. Ele mostra trabalhadores humanitários retirando sacos com corpos em Goma, no leste do Congo, após confrontos com rebeldes. O governo da República Democrática do Congo está em guerra civil contra uma coalizão de paramilitares liderados pelo M23 que já tomou as províncias de Kivu Norte e Kivu Sul, no leste do país. A gravação foi verificada pela equipe de checagem da própria agência Reuters. A imagem mostrada por Trump apareceu em uma publicação do site conservador American Thinker, que discutia tensões raciais no continente africano. O post não legendava a foto, mas informava que se tratava de uma “captura de tela do YouTube” e incluía um link para o vídeo da Reuters.
2️⃣ Antes da reunião de quarta-feira na Casa Branca, o presidente sul-africano enfatizou que melhorar as relações comerciais com os Estados Unidos era sua prioridade. As exportações sul-africanas para os Estados Unidos estão sujeitas a uma tarifa de 30% após o fim da pausa nos novos impostos de importação de Trump, em julho. Ramaphosa esperava encantar Trump durante a reunião, levando consigo dois famosos golfistas sul-africanos e presenteando-o com um livro enorme sobre os campos de golfe de seu país. Porém, a reunião quase terminou com uma discussão. Ramaphosa respondeu Trump de maneira mais suave e diplomática, e evitou repetir a postura do líder ucraniano Volodymyr Zelensky quando foi Humilhado por Trump e discutiu com ele. Ramaphosa até foi irônico, pedindo desculpas por não ter um avião para presentear Trump (em referência ao avião que Trump recebeu de presente do Emir do Qatar). A reunião contou com a presença de seu conselheiro sul-africano Elon Musk e de dezenas de jornalistas.
3️⃣ A reunião ocorreu dias após a chegada de 59 sul-africanos brancos aos Estados Unidos, onde receberam o status de refugiados. Ramaphosa disse na época que eles eram "covardes". Ainda assim, a reunião no Salão Oval começou cordialmente, até que Trump pediu para apagar as luzes do Salão Oval para uma apresentação de vídeo. O clima mudou. O filme contou com a voz de Julius Malema, importante figura da oposição sul-africana, cantando: "Atire no Boer [Africâner], Atire no fazendeiro". Em seguida, mostrou um campo de cruzes, que o presidente dos Estados Unidos, falando sobre as imagens, disse ser um local de sepultamento de fazendeiros brancos. Ele entregou a Ramaphosa o que pareciam ser cópias impressas de histórias de ataques a brancos na África do Sul. Trump disse que buscaria uma "explicação" de seu convidado sobre as alegações de "genocídio" de brancos na África do Sul, que foram amplamente desacreditadas. Ramaphosa respondeu aos cânticos da oposição no vídeo, dizendo: "O que vocês viram — os discursos que foram feitos... isso não é política do governo. Temos uma democracia multipartidária na África do Sul que permite que as pessoas se expressem."
4️⃣ "Nossa política governamental é completamente contrária ao que ele [Malema] estava dizendo até mesmo no parlamento, e eles são um pequeno partido minoritário, que tem permissão para existir de acordo com nossa constituição." Ramaphosa disse na quarta-feira que esperava que Trump ouvisse as vozes dos sul-africanos sobre o assunto. Ele destacou os membros brancos de sua delegação, incluindo os golfistas Ernie Els e Retief Goosen, e o homem mais rico da África do Sul, Johann Rupert. "Se houvesse um genocídio, esses três cavalheiros não estariam aqui", disse Ramaphosa. Trump interrompeu: "Mas você permite que eles tomem terras, e então, quando eles tomam as terras, eles matam o fazendeiro branco, e quando eles matam o fazendeiro branco, nada acontece com eles." "Não", respondeu Ramaphosa. Trump parecia estar se referindo ao fato de que Malema e seu partido, que não faz parte do governo, têm o poder de confiscar terras de fazendeiros brancos, o que não é o caso.
5️⃣ Uma lei assinada por Ramaphosa no início deste ano permite que o governo apreenda terras privadas sem indenização em algumas circunstâncias. O governo sul-africano afirma que nenhuma terra foi apreendida até o momento sob a lei. Ramaphosa reconheceu que havia "criminalidade em nosso país... as pessoas que são mortas por atividades criminosas não são apenas pessoas brancas, a maioria delas são negras". Referindo-se às cruzes no vídeo, Trump disse: "Os fazendeiros não são negros. Não digo que isso seja bom ou ruim, mas os fazendeiros não são negros..." A África do Sul não divulga números de crimes baseados em raça, mas os últimos números mostram que quase 10.000 pessoas foram assassinadas no país entre outubro e dezembro de 2024. Destas, uma dúzia foi morta em ataques a fazendas e, das 12, uma era fazendeiro, enquanto cinco eram moradores de fazendas e quatro eram funcionários, que provavelmente eram negros.
6️⃣ Alegações de genocídio na África do Sul circulam entre grupos de direita há anos. Em fevereiro, um juiz sul-africano rejeitou as alegações como "claramente imaginárias" e "irreais", ao decidir sobre um caso de herança envolvendo uma doação a um grupo supremacista branco. Enquanto Trump insistia no assunto, Ramaphosa manteve a calma. Ele invocou o nome do ícone antiapartheid Nelson Mandela, dizendo que a África do Sul continua comprometida com a reconciliação racial. Quando um jornalista perguntou o que aconteceria se os fazendeiros brancos deixassem a África do Sul, Ramaphosa desviou a pergunta para seu ministro da Agricultura branco, John Steenhuisen, que disse que a maioria dos fazendeiros queria ficar. Mas Trump continuou disparando contra Ramaphosa, que evitou entrar em uma discussão acalorada com ele. Após o confronto, Malema zombou do encontro, descrevendo-o como "um grupo de homens mais velhos se encontrando em Washington para fofocar sobre mim".
7️⃣ "Nenhuma quantidade significativa de evidências de inteligência foi produzida sobre o genocídio branco. Não concordaremos em comprometer nossos princípios políticos sobre a expropriação de terras sem compensação por conveniência política", postou ele no X. Helena Humphrey, ex-embaixadora dos Estados Unidos na África do Sul durante o governo do então presidente Barack Obama, chamou a reunião de "verdadeiramente embaraçosa". "Está claro que uma armadilha foi armada para o presidente sul-africano. Havia toda a intenção de humilhá-lo e, por extensão, envergonhar a África do Sul", disse ela. O chefe do mais importante grupo de interesse dos africâneres da África do Sul disse na quarta-feira à noite que "há questões reais que precisam ser abordadas" quando questionado sobre o encontro Trump/Ramaphosa. Questionada se a Afriforum, uma ONG sul-africana que representa os Akrifaners no país, ajudou a fazer o vídeo exibido no Salão Oval da Casa Branca, a CEO Kallie Kriel disse que o grupo "usou algumas dessas filmagens em alguns de nossos vídeos".
8️⃣ As tensões entre a África do Sul e os Estados Unidos não são novas. Dias depois de Trump assumir seu segundo mandato em janeiro, Ramaphosa sancionou o projeto de lei que permite ao governo da África do Sul desapropriar terras privadas em casos considerados "justos e de interesse público". A África do Sul irritou Trump quando participou da acusação contra Israel na Corte Internacional de Justiça, acusando o pais de genocídio contra os palestinos. Em fevereiro, o presidente dos Estados Unidos anunciou a suspensão da ajuda essencial à África do Sul e se ofereceu para permitir que membros da comunidade africâner — que são, em sua maioria, descendentes brancos dos primeiros colonos holandeses — se estabelecessem nos Estados Unidos como refugiados. O embaixador da África do Sul em Washington, Ebrahim Rasool, também foi expulso em março após acusar Trump de "mobilizar uma supremacia branca" e tentar "projetar a vitimização branca como um apito de cachorro".
⚠️ O africâner moderno descende principalmente de europeus ocidentais que se estabeleceram no extremo sul da África em meados do século XVII. Uma mistura de colonos holandeses (34,8%), alemães (33,7%) e franceses (13,2%). A língua deles, o africâner, é bem parecida com o holandês. Mas, à medida que plantavam suas raízes na África, os africâneres, assim como outras comunidades brancas, forçaram os negros a deixar suas terras. Os africâneres também são conhecidos como bôeres, que na verdade significa fazendeiro, e o grupo ainda está intimamente associado à agricultura. Em 1948, o governo liderado pelos africâneres da África do Sul introduziu o regime do apartheid, ou separação, levando a segregação racial a um nível mais extremo. Isso incluía leis que proibiam casamentos entre pessoas de diferentes raças, reservavam muitos empregos qualificados e semiqualificados para pessoas brancas e forçavam pessoas negras a viver no que eram chamadas de municípios e terras natais.
‼️ Eles também foram privados de uma educação decente, com o líder africâner Hendrik Verwoerd tendo dito, de forma infame, na década de 1950, que "aos negros nunca deveriam ser mostrados os pastos mais verdes da educação. Eles deveriam saber que sua posição na vida é ser cortadores de lenha e carregadores de água". O domínio africâner na África do Sul terminou em 1994, quando os negros foram autorizados a votar pela primeira vez em uma eleição nacional, levando Nelson Mandela e o Congresso Nacional Africano (CNA) ao poder. Atualmente, os africâneres somam mais de 2,5 milhões de uma população de mais de 60 milhões — cerca de 4%. Nenhum dos partidos políticos da África do Sul — incluindo aqueles que representam os africâneres e a comunidade branca em geral — alegou que houve um genocídio na África do Sul. Mas tais alegações circulam entre grupos de direita há muitos anos e, durante seu primeiro mandato, Trump se referiu à "matança em larga escala de fazendeiros" na África do Sul. Alguns fazendeiros brancos foram mortos, mas muitas informações enganosas circularam online.
❗️ Defendendo sua decisão de dar status de refugiado aos africâneres, Trump disse que um "genocídio" estava ocorrendo na África do Sul, fazendeiros brancos estavam sendo "brutalmente mortos" e suas "terras estavam sendo confiscadas". O presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, disse que é "completamente falso" alegar que "pessoas de uma determinada raça ou cultura estão sendo alvo de perseguição". Referindo-se ao primeiro grupo que se mudou para os Estados Unidos, Ramaphosa disse anteriormente: "Eles estão indo embora porque não querem aceitar as mudanças que estão ocorrendo em nosso país e em nossa constituição." Elon Musk se referiu às "leis de propriedade como racistas" do país, alegando que seu provedor de serviços de internet via satélite Starlink "não tinha permissão para operar na África do Sul simplesmente porque não era negro". Para operar na África do Sul, a Starlink precisa obter licenças de rede e serviço, que exigem 30% de propriedade de grupos historicamente desfavorecidos.
▶️ Musk também acusou o Economic Freedom Fighters (EFF), o quarto maior partido da África do Sul, de "promover ativamente" um genocídio por meio de uma música que canta em seus comícios.
A música característica do líder da EFF, Julius Malema, é "Atire no Boer, Atire no fazendeiro", que ele canta em comícios políticos. Grupos de lobby africâner tentaram proibir a música, dizendo que ela era altamente inflamatória e constituía discurso de ódio. No entanto, a Suprema Corte de Apelações da África do Sul decidiu que Malema tem o direito de cantar a letra — popularizada pela primeira vez durante a luta contra o apartheid — em comícios políticos. O tribunal decidiu que uma "pessoa razoavelmente bem informada" entenderia que quando "canções de protesto são cantadas, mesmo por políticos, as palavras não devem ser entendidas literalmente, nem o gesto de atirar deve ser entendido como um chamado às armas ou à violência". Em vez disso, a música era uma "forma provocativa" de promover a agenda política da EFF - que era acabar com a "injustiça econômica e fundiária".
9️⃣ Em 2023, o ex-presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, pediu que Malema parasse de cantar a música, dizendo que ela não era mais politicamente relevante, pois a luta antiapartheid havia acabado. Embora o governo da minoria branca tenha terminado em 1994, seus efeitos ainda são sentidos. O padrão de vida médio é muito mais alto para a comunidade branca do que para a comunidade negra. Pessoas brancas ocupam 62,1% dos cargos de alta gerência, apesar de representarem apenas 7,7% da população economicamente ativa do país, de acordo com um relatório recente da Comissão para a Equidade no Emprego da África do Sul. O governo tentou mudar isso por meio do que chama de leis de "empoderamento econômico" e "igualdade de emprego". Em março, um grupo empresarial disse que cerca de 70.000 africâneres expressaram interesse em se mudar para os Estados Unidos após a oferta de Trump — de uma população estimada de 2,5 milhões.
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